Phobia

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Cobras, serpentes, jibóias. Tinha pavor desses bichos horripilantes. Nunca tinha estado frente a frente com um desses bichos. Mas aquelas imagens eram suficientes.

Bichos sem pernas, sem braços, por ali a rastejar, a arrastar a terra, as folhas mortas. Escondem-se entre os arbustos e aparecem tão repentinamente como desapareceram. Deixam só as marcas ondulantes na terra batida. E talvez uma ferida numa perna incauta.

Não, ainda bem que nunca se tinha cruzado com um daqueles bichos!

E havia quem os mantivesse como animais de estimação! Que horror!

Nunca se tinha cruzado com um deles. E não tinha vontade nenhuma de o fazer.

Mas desde que lhe entregaram os bilhetes, que não conseguia dormir decentemente. Mesmo na noite anterior, acordara tantas vezes durante a noite, que perdera a conta.

E agora, via cobras em todo o lado. Tatuada no braço do vizinho, na t-shirt do miúdo a passear no parque, no anúncio outdoor ao fundo da rua.
Cobras, cobras, cobras!

Já estava a antecipar, imaginou vezes sem conta se conseguia fugir. Se conseguiria ser rápida o suficiente. E se pisasse uma sem querer? E se ela se enrolasse à perna e não quisesse sair?

Asseguravam-lhe que estava segura, que as cobras andavam na sua vida, longe dos humanos.

Mas toda a gente sabe que no campo há cobras. Escondidas, mas estão lá.

Falta um dia e tem que ir fazer a mala.

Roupa, pijama, pasta de dentes, escova de cabelo, sapatos. Repelente? Será que resulta? Não, isso é para insetos.

Calças de ganga. Das mais grossas que há no armário. Botas. Sempre hão-de proteger melhor.

Não há volta a dar. Tem que ir. Fecha a mala, coloca-a perto da porta. Para se lembrar que tem que ir.

Veste o pijama e tenta dormir. Contar carneiros, talvez ajude. Puxa o cobertor até às orelhas e enrola-se sobre si mesma. Fecha os olhos, precisa de dormir, pede que o sonho venha.

Acorda entremunhada. A princípio não percebe que som é aquele. É o despertador. Parece que afinal adormeceu logo. Ainda bem, ao menos recuperou energia.

Levanta-se e dirige-se ao chuveiro. Um duche tem sempre o poder de a despertar e. ao mesmo tempo, relaxar.

Já vestida, pega na mala e puxa-a para a rua. Ainda bem que tem rodinhas, assim parece-lhe menos pesada.

O João já lhe ligou, estão à espera dela.

A coragem ainda quis faltar-lhe, mas aquele telefonema lembrou-a de que tinha que ir. Estavam à espera dela, e, se ela se atrasasse, todos perdiam a viagem.

A culpa era dela. Nunca falara aos amigos daquele medo. Como podiam eles adivinhar o que aquele presente de aniversário significava para ela? “Uma oportunidade para enfrentares o teu medo.” – sussurrou-lhe uma vozinha.

Oportunidade ou não, agora não importava. Ali estavam eles, os seus amigos. Todos sorridentes, cheios de energia e prontos para a viagem. A Carolina também tinha calçado botas pesadas. Estavam ambas preparadas para dar passos largos na caminhada. A viagem decorreu cheia de risadas, como era habitual com aquele grupo.

Só quando chegaram à estrada da casa que alugaram, se lembrou das cobras. Os arbustos na entrada pareciam ser um esconderijo prometedor.

À espera deles estava o caseiro, com as chaves da casa e as instruções sobre como aproveitarem a semana. Havia vários sítios onde podia ir e várias atividades que podiam fazer.

Toda a gente estava entusiasmada e todos tinham imensas perguntas. Mas ela só tinha uma: “Há cobras?”

Engoliu a pergunta, mas quando o caseiro saiu, foi atrás dele. Puxou-lhe pela manga e fez a pergunta, temendo a resposta: “Há, sim, há por aí algumas”. Sorriu. “Mas não se preocupe, menina, elas têm mais medo de si, do que a menina delas.”

Aquela frase pareceu-lhe irreal, como podia ser? Perguntou antes: “E como sei que há uma por perto?”

“Ouve-se o som dela a fugir pelo chão, não se preocupe!”

E, com o mesmo sorriso, o caseiro foi embora.

Voltou para casa. Como estavam todos cansados da viagem, estavam já todos a escolher as camas. Seria mais uma noite sem dormir?

Conseguiu dormir, mas dos sonhos, não se livrou. Cobras a rastejar e a aparecer inesperadamente.

Bem, pelo menos se encontrasse alguma, não estaria sozinha. Iam sair todos em grupo, alguém chamaria ajuda, caso ela fosse atacada.

Saiu com este estado de espírito, mas voltou relaxada. O dia tinha sido mesmo bom. E nem vestígios de cobras. E, sem encontros inesperados, foi como a semana decorreu.

Na manhã da partida, saiu para apanhar um pouco de sol e da brisa matinal. Aquela semana tinha sido mesmo muito boa. Havia de ali voltar.

E foi no meio daqueles pensamentos que ouviu um som. Um arrastar. Crshh, crshhhh.

Levantou-se, sobressaltada e olhou à volta. Lá estava ela: uma cobra. Sem pernas, sem braços, a arrastar-se, a ondular-se pelo chão, a arrastar as folhas, a levantar poeira. Uma cobra!

Abriu a boca para gritar e nessa altura, a cobra olhou para ela. O grito ficou preso, com o terror.

Mas esvaiu-se, ao ver a velocidade com que a cobra rastejou dali para fora, para longe dela.

Deitou fora o ar que estava a conter, e olhou à volta, a certyificar-se. Nem sinal da cobra.

Afinal, o caseiro tinha razão.

© Isa Lisboa

Branco

-“Foi-te dada uma parede em branco.” – Começou a Voz, em tom inquietantemente calmo. – “Quando, mais tarde, as tuas mãos tinham força e os teus olhos podiam ver, foram-te dadas tintas e pincéis. No espírito de criança curiosa, foste experimentando as cores uma a uma, entusiasmada com o resultado de algumas, perguntando-te quanto ao contraste entre outras. Não te preocupavas se a parede estava a ficar bela, se estava parecida com as paredes do lado. Era a tua parede. Era a parede em que começavas a ver-te reflectida.”

Estas memórias eram assustadoras e dolorosas, os olhos pareciam querer verter lágrimas, respondendo ao coração que estava apertado com as palavras duras ditas por aquela voz meiga. Eram memórias difusas, que já a tinham assaltado nos momentos de silêncio. Aqueles momentos de que fugia, imersa no ir, no vir, no fazer, no acenar da cabeça enquanto sorria.

Dizia a si própria que eram memórias inventadas, ditas pela sua imaginação.

Como podia ser, como podia aquela parede ter sido branca um dia? E como podia ter recebido tanta cor assim, sem a rejeitar, cuspi-la para fora de si? Como poderia ser possível que tenha sido a sua mão, a sua própria mão a segurar os pincéis que deram tanta cor ao que agora era só cinza, um único tom de cinza?

Não, não podia ser. A Voz enganou-se. Ou estava a tentar enganá-la, a Voz. Porquê não sabia, mas só podia ser isso. Ou talvez ainda estivesse apenas a conhecer a insanidade… Diziam que ela se aproximava inesperadamente, que a confundiríamos facilmente com realidade…

Colocou a almofada por cima da cabeça, não queria ouvir mais nada. “Não, não te quero ouvir!”, gritou mentalmente.

A Voz calou-se, tão repentinamente como havia surgido no ar.

A medo, retirou a almofada da cabeça, confirmou que só silêncio havia sobrado.

Agora tudo lhe parecia ainda mais irreal, insano…

Olhou à volta e confirmou que nada havia e nada se ouvia. Fora tudo fruto da sua imaginação, era a justificação plausível. Era a única.

Dormir. O melhor era dormir.

Aconchegou-se nos lençóis e fechou os olhos. Ao fim de um minuto, o corpo lembrou-a de que estava cansado. O corpo queria dormir, mas a mente não.

Ao fim de algumas horas, finalmente, o corpo ganhou a luta.

Quando acordou, abriu os olhos, olhou para o tecto e a primeira palavra que o despertar lhe sussurrou foi…

“… Azul …”

© Isa Lisboa

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De volta ao normal

Imagem – Pixabay
Foram semanas estranhas, estas. Foi-nos pedido para fazermos o esforço de mudar os nossos hábitos. Para mudarmos a forma de estar, de interagir. Estranhámos, mas tentámos.
A princípio não sabíamos bem como fazer, mas até nos fomos habituando.
Era estranho olhar para as ruas, pegar no telemóvel e ver aquelas imagens.
Sugeriram-nos até que desligássemos os telemóveis, mas isso pouco pegou. Precisávamos partilhar as fotos, mandar mensagens para perceber como os amigos estavam a lidar com aquilo tudo.
Não muito bem, pelo menos não todos. Foi uma mudança muito abrupta.
Ir ao supermercado foi a experiência mais estranha para mim. Custava-me entender a organização das prateleiras e distinguir as marcas e os preços. Online é muito mais fácil fazê-lo. E foi uma aventura manobrar o carrinho. Enchi vários sacos e pareceu-me quase impossível arrumá-los no carro. Como farão os funcionários das entregas? Parece-me um talento!
Caminhar na rua até soube bem, embora tanto espaço aberto me tenha causado alguma ansiedade. Estou contente por poder voltar aos meus passeios curtos.
Já marcámos uma sessão de zoom para podermos falar mais naturalmente.
Estamos todos cansados de tantas semanas fora de casa. Com saudades da segurança das nossas quatro paredes. E da facilidade de abrir o computador e tratar de tudo à distância de um clique.
Hoje encomendei almoço no meu restaurante favorito. Devem ser eles a tocar à campainha.
E assim, finalmente, a vida volta ao normal.
 
© Isa Lisboa
 
[Texto resultante de um desafio de escrita]

Vacina

Foram anos de investigação, anos de desânimo.
Na anterior pandemia Covid19, esta pandemia veio ao de cima de forma alarmante. Na verdade, esta doença já existia há muitos anos, mas a humanidade parecia adormecida a ela.
Via-se, no entanto, alguma esperança. Nem todos pareciam ter sido acometidos desta fatalidade invisível e aparentemente assintomática.
Notou-se com o coronavírus, na indiferença às mortes, indiferença igualada à registada face ao aumento da pobreza. Duas tragédias que andaram de mãos dadas, mas que poucos viam, entrincheirados do seu lado das certezas e das soluções únicas.
O mundo cientifico acordou com uma animadora notícia: a vacina há tanto procurada foi encontrada.
Depois de descoberta a vacina para o vírus e atingida a imunidade de grupo, a humanidade começou a aperceber-se lentamente do mal que lastrava entre nós. Escondido, mascarado, desculpando-se com a pandemia.
Aqueles que foram, a custo, mantendo a imunidade decidiram juntar-se. Procuraram cérebros que pudessem ajudar. Alguns deles, eles próprios acometidos pela doença, aceitaram, ainda assim, a tarefa. Seduzidos talvez pelo desafio.
A investigação decorreu durante anos e os primeiros testes foram aprovados no ano passado. Renascia a esperança para o ser humano. A esperança de recuperarmos aquela centelha essencial. A esperança para uma sociedade justa, humana, equilibrada.
Hoje, todas as farmacêuticas do mundo anunciaram que estão prontas para começar a produzir a vacina e a distribuí-la.
Serão primeiro inoculados os mais necessitados. Começarão pelas pessoas com mais altos cargos de poder. Aquelas que mais precisam ser curadas, de forma a começarem a dar o exemplo pelo seu comportamento.
Mas a expectativa é que chegue a todos, até que deixe de ser necessária.
Até que recuperemos a imunidade de grupo, e nos curemos da falta de empatia. Rejubilemos.

© Isa Lisboa

[Texto resultante de um desafio de escrita, que consistia em escrever um artigo / notícia sobre a descoberta de uma vacina conta o que eu considere ser um dos problemas da humanidade.]

Maria

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Todas as mulheres da minha família se chamam Maria. Pois é, até parece estranho, não é?
Não, não nos confundimos umas às outras. Nasce sempre só uma. A cada geração nasce só uma cachopa. A minha foi logo a primeira, veio antes dos irmãos.
Eu vim no meio, fiquei ali meio esquecida no meio dos gaiatos. A minha Maria despachou-se logo, e até me ajuda a manter os irmãos na linha.
Não, nunca nos fez confusão. Uma vez um doutor veio cá à aldeia e fez assim muitas perguntas. Ficou muito curioso. Disse que era capa de ser dos genes.
Disso dos genes não sei. Sei que sempre deu jeito. As cachopas não conseguem fazer o trabalho pesado que os homens conseguem. E há muito desse para fazer por aqui.
Sim, sempre nasceram todos bem. E rápido. Vieram todos cheios de pressa para o mundo. Só desta vez é que demorei muito. Foram muitas horas. E eu já estava tão cansada. O médico disse que tinha que me operar, abrir-me a barriga e tirar de lá o meu bebé. O bebé estava torto.
Ai, se fosse nos tempos mais antigos. Uma geração podia ter ficado sem Maria. Mas sempre tivemos sorte e madrinhas que eram boas parteiras. A minha avó perdeu um menino assim. E ela quase se foi também. O menino não respirava. Naquele tempo, sabia-se que podia acontecer. Eram desgraças que se esqueciam. E de que só se falava nos dias tristes.
Mas eu fui ao hospital e o médico operou-me. Lembro-me de tudo até certa altura e acho que depois desmaiei.
Quando acordei, o Alfredo estava a falar com o médico. Estava meia assarapantada, mas percebi que tinha acontecido alguma coisa.
Tenho uma má notícia e uma boa, disse o médico.
Ora diga-me já a má, que é melhor despachar isso.
Usou umas palavras complicadas, mas eu percebi o que era “complicações no parto”. E percebi que tiveram que me cortar por dentro e que não podia ter mais meninos. Olhei para o Alfredo e não percebi bem se estava amofinado ou aliviado.
Pois claro, aliviado! Há muitas bocas para alimentar e os miúdos ainda não conseguem todos ajudar na jorna.
Eu não sabia o que pensar, e o pensamento só estava à volta da sala, à procura do meu bebé.
Entrou uma enfermeira com um embrulhinho ao colo. E aqui está a boa notícia, disse o médico. A sua menina, que foi uma grande guerreira.
Olhei para o Alfredo e ele acenou que sim com a cabeça. Nasceu-nos outra cachopa. Que nome lhe vamos pôr agora, Maria?
A enfermeira deu-ma para os braços e eu olhei para ela, ainda a tentar perceber. O outro médico havia de ficar ainda mais espantado. Disse-me qualquer coisa sobre os genes não mentirem.
Ela olhou para mim e agarrou-me no dedo com a mãozita. Com uma força grande, aquele bocadito de gente.
Uma guerreira, repetiu o médico. E foi-se embora.
Fiquei eu, o Alfredo e a menina.
Como a vamos chamar, Maria?
Oh Alfredo, eu quero chamar-lhe Vitória!
Quer saber porquê? Porque tenho cá para mim que ela vai ser uma guerreira toda a vida. É a última da família, mas ao mesmo tempo também foi a primeira.
O senhor até veio cá para escrever sobre ela e tudo. Sabe o que eu acho? Não há-de ser só o senhor! Ainda se vai escrever mais sobre a minha Vitória!
“Também me parece, D. Maria. Mas eu agora já tenho tudo o que precisava. Depois venho cá trazer-lhe o jornal, quando sair. Agora vou deixá-la descansar. A si e à Vitória.”

 

© Isa Lisboa

Porque existem Marias e porque existem Vitórias, marquemos o Dia Internacional da Mulher!

Vendedor de sonhos

Imagem: http://www.pixabay.com

Era um vendedor de sonhos. Tinha um pregão chamativo. Dispunha-os de forma inteligente na sua bancada, de forma a que os maiores ficassem em destaque e chamassem também a atenção dos potenciais clientes.
Alugara aquele espaço, sem saber ainda bem o que queria vender. Queria vender algo que as pessoas precisassem, mas não só. Queria vender algo que as pessoas quisessem.
Matutou, matutou, e viu o quanto os sonhos andavam na mó de baixo, ultimamente.
As pessoas contentavam-se com o que era normal, habitual, banal.
Era um risco, sabia. Oferecer algo diferente tanto podia ser um grande êxito, como um gigantesco flop.
Mas ser vendedor de sonhos era profissão que lhe assentava como uma luva.
Dedicou-se a escolher a melhor matéria-prima e a estudar a melhor forma de os moldar, de maneira a que fossem especiais. Cada um saía diferente, como devia ser, para que cada cliente pudesse comprar o seu próprio sonho, adaptado ao gosto de cada um.
Distribuiu flyers por vários locais e, no dia marcado, inaugurou a sua banca de sonhos.
O efeito surpresa resultou, vieram muitos curiosos e, naturalmente, outros tantos cépticos. Nem todos compraram, mas o primeiro dia encerrou com saldo positivo.
A curiosidade passou palavra e outros curiosos foram passando e comprando. Negócio de vento em popa, era agora, oficialmente um vendedor de sonhos.
Sentia-se feliz de cada vez que via a bancada a esvaziar. Mais feliz quando, por acaso, se cruzava com alguém na rua, que, feliz, lhe vinha dizer como gostava dos sonhos que vendia.
Alguns clientes eram mais exigentes. Ao chegar, não encontravam exposto aquilo que procuravam. Deixavam encomendados os seus requisitos, aquilo que queriam de especial.
Isto constituía um desafio para o vendedor, que também era um fazedor.
Alguns sonhos podiam demorar semanas a aperfeiçoar. Desde descobrir tudo o que era preciso, até encontrar as quantidades certas e o ponto ideal de os misturar. O nosso vendedor sentia-se um artesão. E, na verdade, era arte o que saía das suas mãos.
Por vezes sentia uma ponta de nostalgia quando vendia um novo tipo de sonho… Afinal era uma criação sua e seria outra pessoa a usufruir dela…
Mas algo maior se sobrepunha, como se não estivesse apenas a vender, mas também a construir.
No entanto, quando recebeu a sua primeira reclamação, apercebeu-se de que as pessoas se esqueciam rapidamente da única instrução que dava quando vendia um sonho:
“Alimentar diariamente!”

© Isa Lisboa

Conto sem nome

Uma cara de idade indefinida saudou-me. Os seus olhos pareciam indolentes pela inexpressividade. Uma ruga despontava na testa, levando a supor ser um homem de meia idade. Pálpebras encovadas, mas de cansaço, pareceu-me. Sim, eram olheiras de uma noite mal dormida. Ou talvez de uma vida mal dormida, ocorreu-me. A cabeleira farta caía sobre a testa, também ela lhe parecendo exausta, assim, ali. Reparando nesses cabelos desavindos, puxou-os para o lado. Preguiçosos, não queriam ir. À segunda tentativa, desistiu de se ajeitar. Parecia que tanto fazia.
Estranhei esta atitude. Andava a antecipar este encontro já há alguns dias. Esperava um homem enérgico, talvez com algum distanciamento, mas não com esta indiferença. À sua maneira, construíra um pequeno império. O seu nome era conhecido por toda a cidade. As empresas em que participava e fizera crescer, eram mais do que se imaginava. Um polvo no mundo empresarial daquela cidade do interior.
Normalmente discreto, não gostava de dar entrevistas. Fora uma surpresa enorme quando o chefe lhe entregara aquele trabalho.
“Foi o Presidente da Câmara que me convenceu. Ele acha que esta entrevista será boa para divulgar a cidade.” – Disse o empresário, como que respondendo-lhe. – “Não tenho jeito para isto, só sou bom com números!”
Fazendo uma pausa, acrescentou: “E também não tenho muito tempo!”
Ali estava, afinal, o feitio pelo qual era conhecido.
Endireitei-me e respondi: “Claro, não lhe tomo muito tempo!”
Agarrei-me ao meu bloco de notas e sentei-me na cadeira que me indicou.
“Em primeiro lugar, agradecemos muito a sua disponibilidade para esta entrevista.”
Levantou-me o sobrolho e tamborilou os dedos no tampo da mesa.
“Certo” – pensei eu – “Vamos direto ao assunto!”
Fui percorrendo cada uma das perguntas que tinha preparado e tirei notas com a mesma precisão clínica com que me eram respondidas.
Cheguei àquela parte do meu bloco de notas marcada com um ponto de interrogação. Enquanto preparava a entrevista, fiquei com dúvidas sobre se devia fazer aquelas perguntas. E agora tinha ainda mais.
“É tudo?” – Cortou.
Engoli em seco, respirei fundo e pus o meu melhor sorriso. “Só mais duas perguntinhas.”
Ficou calado, aguardando.
“Gostaria de saber o que o levou a escolher o curso de gestão quando foi para a faculdade. Esperava nessa altura construir tudo o que construiu?”
De novo o sobrolho levantado. De novo, o meu melhor sorriso, a tentar ser encorajadora.
“Era um curso com boas saídas, e era um trabalho digno, foi uma escolha óbvia. Claro que na altura não imaginava ainda onde podia chegar, mas imaginei que podia fazer muitas coisas. E parece ter sido um bom investimento, de facto.”
Esta resposta quase respondia à minha última pergunta. Mesmo assim, arrisquei:
“E qual era o seu sonho de criança? Ser bombeiro, piloto de aviões?”
A sua expressão ficou parada e o meu coração também parou, com a possibilidade de ter estragado a entrevista naquele momento.
Olhou para o lado, respirou fundo.
“Nessa altura, eu queria ser pintor. Gostava muito de desenhar o que via. E dar até formas diferentes à realidade. Cheguei a pintar algumas telas!”
“E essas telas ainda existem?” – Arrisquei de novo.
“Talvez, no sótão dos meus pais!”
“E porque parou? Talvez pudesse ter mantido essa paixão como hobby…”
“Porque a paixão não cabe na realidade. Não se mede. Não vale a pena inventar, no final das contas, o que podemos descrever vale sempre mais!”
Pareceu ir até outro mundo enquanto dizia estas palavras, mas voltou a si. Olhou para o relógio e perguntou: “Creio que já terminámos as suas duas perguntas!”
Vi que tinha perdido o momento e acenei. Agradeci mais uma vez a entrevista e preparei-me para ir embora.
Fez-me sinal para esperar. “Estas duas últimas perguntas não farão parte da entrevista! Off the record, é como dizem?”
“Claro, se assim o deseja.”
Ia insistir, mas a sua expressão retornara à do início da entrevista.
Parecia que, por um momento, tinha voltado a ser menino. Mas o adulto voltara. Voltara o adulto cansado. Cansado de uma vida inteira.
Agora tenho a certeza que era isso.

 

© Isa Lisboa

 

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Amendoim, o Esquilo

Amendoim gostava muito de comer amendoins. Os seus amigos gostavam de nozes, avelãs, bolotas e alguns gostavam de procurar cogumelos e sumarentas frutas.

No entanto, o nosso esquilo gostava de amendoins e sempre que podia degustava uma bela dose desta iguaria.

Mas um dia, o Esquilo – Mor reuniu toda a comunidade de esquilos e anunciou que a forma como se alimentavam precisava ser redefinida. De forma a optimizar os recursos, os alimentos mais difíceis de encontrar deixariam de fazer parte da dieta. Nessa lista, incluíam-se os amendoins.

O Amendoim ficou desolado! Como ia deixar de comer amendoins, se eram o seu alimento favorito? Até era esse o seu nome, como lhe podiam de repente negar este repasto?

Uma vez que não podia deixar de comer, lá foi buscando as suas doses de bolotas e nozes. Apesar de não lhe saberem tão bem como os amendoins, deu por si a comer mais e cada vez mais. Sentia-se culpado, afinal porque tinha aquela necessidade de comer todas aquelas bolotas? Comia até sentir o seu estômago bem forrado. Estranhamente, isso dava-lhe uma certa sensação de segurança, que nem sequer sabia explicar.

Um dia comeu tanto que ficou com dores de estômago. Alguma coisa tinha que mudar.

Amendoim não queria comer todas aquelas bolotas; nem sequer lhe sabiam assim tão bem! Não sabiam tão bem quanto os amendoins. Suspirou ao lembrar-se dos seus amendoins, do seu sabor, da sua textura e de como o seu estômago ficava feliz a comê-los.

Pensou que não se importaria de comer menos amendoins que bolotas, porque eram amendoins e por isso valia a pena. E, deste pensamento, foi um raio até outro: não se importava nada de ter mais trabalho para encontrar amendoins. O Esquilo – Mor queria optimizar recursos, mas o Amendoim podia optimizar os seus próprios recursos, não podia?

Entusiasmado, foi a correr encontrar um amigo seu que estava numa dieta privada de castanhas e contou-lhe a sua ideia.

O amigo fez um ar assustado: “Não, não, se o Esquilo – Mor diz que é assim que temos que fazer, é assim que temos que fazer. Precisamos de comida, devemos fazer o que ele diz.”

Amendoim explicou a sua proposta: iriam continuar a reunir a comida proposta pelo Esquilo – Mor mas, no seu tempo, iriam procurar a comida de que mais gostavam.

O amigo deu-lhe uma longa lista de contras, mas o Amendoim preferiu focar-se nos prós, lembrando-se do sabor dos amendoins.

Durante semanas, seguiu o seu plano. Tinha dias em que se sentia mais cansado, e em que quase se esquecia do porquê da sua luta. Ainda por cima, todos lhe diziam que era uma tolice continuar com tudo aquilo. Já lhe tinham encontrado uma forma de viver, para quê complicar?

Mas quando chegava à sua toca e podia degustar os seus amendoins, o pequeno esquilo sentia uma paz e alegria que não sabia verbalizar.

Agarrando-se a essa sensação, Amendoim continuou.

Um dia, ao observar humanos ao longe viu que eles lançavam coisas à terra e esperavam que elas crescessem.

Curioso, Amendoim observou e aprendeu.

E de tudo o que aprendeu, foi testando, errando, testando…

E assim, Amendoim, o Esquilo, se tornou no primeiro esquilo plantador de amendoins.

© Isa Lisboa

História escrita para a Ana Margarida, num Workshop de “Histórias e Metáforas Terapeuticas”.

Se quiserem ouvir-me a contar esta história, podem fazê-lo no YouTube, Instagramou https://www.facebook.com/plugins/video.php?href=https%3A%2F%2Fwww.facebook.com%2Fisa.lisboa.escritora%2Fvideos%2F775549386294751%2F&show_text=0&width=560” target=”_blank” rel=”noopener”>Facebook.


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A pequena fada das flores

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Imagem: pixabay.com

Era uma vez uma pequena fada, que vivia no Jardim das Orquídeas. A sua função nesse jardim era cuidar das plantas, regá-las, e deixá-las bonitas.  Sentia-se muito feliz ali, no Jardim das Orquídeas.

Um dia, andava a voar por ali perto e encontrou uma fada amiga. Ela vivia no Jardim das Rosas. Começou a falar-lhe da vida por lá e convidou-a a dar um passeio por entre as rosas.

A nossa pequena fada aceitou o convite e seguiu-a. Achou as rosas muito bonitas. Mas não eram tão bonitas quanto as suas orquídeas – pensou. As orquídeas eram bem mais exóticas, apesar de lhe parecer que era mais difícil cuidar delas que das rosas.

Meio imersa nestes pensamentos, sobressaltou-se com um conjunto de risadas e vozes familiares. Eram amigas suas que já não via há muito tempo. Conversaram até ao final do dia e foi muito bom! Enquanto voltava para casa, percebeu que tinha muitas saudades daquelas três amigas. Seria bom trabalharem no mesmo jardim e estarem mais tempo juntas.

No outro dia, voltando ao trabalho, tinha as suas orquídeas com muitas saudades dela e a precisar dos seus cuidados. E foi a isso que se dedicou durante todo o dia.

Quando chegou ao final do dia, percebeu que estava dividida entre Orquídeas e Rosas.

Não queria deixar as suas lindas flores, mas sentia falta das suas amigas.

Precisava de um conselho e, para isso, ninguém melhor que a Fada Azul. Voou até ela, ansiosa!

“Acalma-te, pequena fada.” – disse-lhe logo a anciã – “A tua mente está dividida, mas não é aí que encontrarás as respostas que procuras. As tuas respostas só podem ser ouvidas dentro do teu coração. É o teu coração que sabe qual é o teu verdadeiro lar.”

A pequena fada saiu a pensar naquelas palavras. Como ouvir o coração?

Decidiu ir até um lugar silencioso, onde estivesse sozinho, sem ninguém à volta, sem ninguém a opinar.

No início foi difícil ouvir-se, porque mesmo longe de tudo, continuava a ouvir barulho.

Mas depois de um tempo dedicada apenas a ela própria, a resposta ao seu dilema apareceu; clara como água, dentro de si.

© Isa Lisboa

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Imagem:pixabay.com

História escrita para a Ana Catarina, num Workshop de “Histórias e Metáforas Terapeuticas”.

E vocês, já passaram por um dilema semelhante? Em que têm dois caminhos à frente e, seja qual for que seguirem, há sempre algo a ganhar, mas também a perder? Conseguiram encontrar a solução dentro de vocês mesmos?

Se quiserem ouvir-me a contar esta história, podem fazê-lo no YouTube, Instagram ou Facebook.

Um sonho de Natal

A última reunião da agenda estava encerrada, tudo havia corrido como Alexandre havia planeado, a promoção que tanto merecia parecia-lhe estar agora mais próxima.
Relia o último e-mail do dia. “Send”.
Arrumou as pastas no sítio certo, na segunda feira voltaria a abri-las.
Há poucos minutos, Inês ligara-lhe, avisando que o esperava em casa mais cedo, este ano toda a família estaria presente na Ceia de Natal. Todos…excepto Diogo…
Já estava tudo organizado para a Noite de Natal, o melhor catering estava assegurado e todas as prendas já lhe haviam sido entregues e arrumadas na bagageira do seu Audi. Isabel tinha sido inestimável, como sempre. A Inês adorava-a, com a sua ajuda consegue sempre organizar a ceia perfeita em cada ano. E também fica sempre encantada com os presentes que ela escolhe. Este ano encomendou um quadro, de um daqueles artistas emergentes. Espero que goste, pergunto-me porque quer embelezar a parede, quando costuma preferir adornos para si… Edmundo Bram… Algo no nome desse artista lhe parecia estranhamente familiar, mas porque seria? O telefone tocou de novo.
“Sim, querida, estou a sair do escritório, não te preocupes, chegarei a tempo.” … “Eu também, um beijo”.
Alexandre dirigiu-se ao seu carro e sentiu-se a relaxar quando se sentou nos seus bancos de pele e se preparou para rodar a chave na ignição. A viagem até casa foi um prazer, como ele adorava conduzir!
Chegou a casa ainda a tempo de vestir algo mais confortável.
Ouvia já os convidados a chegar, a tia Matilde já inundava a sala com os seus reparos à roupa de Inês. Quando começámos a namorar, a tia Matilde olhava para mim com ar desconfiado, dizia-me que parecia não ir a lado nenhum…. Bom, depois desse fraco vaticínio, Inês já não devia preocupar-se com a sua opinião… Espero que a Lurdes chegue depressa, é a única que consegue acalmar um pouco os ânimos da irmã.
São o verso e o reverso de uma mesma medalha, um pouco como eram Alexandre e o seu irmão.
“Não”, pensou logo Alexandre, porque era a segunda vez que a recordação de Diogo o assaltava.
O seu irmão não estava ali, tal como não estava quando Alexandre conseguiu o estágio na consultora, no dia em que conseguiu reunir coragem para se declarar a Inês, no dia em que casaram. E não estaria cá daqui a 7 meses, não iria conhecer o sobrinho.
Ainda ninguém sabia, finalmente esperavam um filho!
Os seus pensamentos foram interrompidos pela voz da sua mãe, que o chamava. Estava na hora de descer.
A irmã e os seus sobrinhos gémeos também já haviam chegado. As crianças tinham uma alegria contagiante, à qual Alexandre nunca conseguia resistir. Talvez ele e Inês também pudessem ter gémeos, pensando na tendência genética da família.
A noite decorreu, todos estavam felizes. Quando já tinham voltado para casa, Alexandre sentou-se por um pouco. Apagou as luzes da casa e dirigiu-se ao quarto. Inês já dormia, Alexandre escorregou por entre os lençóis e olhou para Inês. Como continuava linda. Mudou o look ao longo dos anos, mas aquela curvinha no queixo, continua lá… Ficou um pouco a ouvir a sua respiração leve e adormeceu também.
Acordou cedo e sentiu vontade de ir até ao jardim. Vestiu um casaco e foi até lá, a pé. Dirigiu-se ao banco que procurava e sentou-se a olhar para a água da fonte, que se renova, sendo sempre a mesma… Sentiu um pequeno barulho e um jovem aproximou-se de si e sentou-se. Alexandre sentiu que estava a ficar louco, aquele rapaz parecia Diogo!
“Não estás louco, sou eu, o Diogo!” “Não pode ser, tu foste embora!” “Mas voltei” “Não, não podes ser tu, estás na mesma, não envelheceste, como eu!” “O Peter Pan também não envelheceu quando fugiu para a Terra do Nunca” “Porque dizes sempre esses disparates? Não és o Peter Pan, não eras uma criança quando partiste! Não foram fadas que te levaram, foram os teus próprios pés!” “Não, mas fugi porque não queria crescer, não da mesma forma que tu querias! Fui em busca do meu caminho, precisava descobrir-me” “E encontraste-te?” “Encontrei-me, mas vejo que tu estás a perder-te” “O que queres dizer com isso? Estou óptimo!” “Sim, sei tudo isso, sei que conseguiste tudo o que sonhaste, a tua carreira está em ascensão, casaste com a Inês, mostraste à família dela que estavam enganados a teu respeito.” “Sim, sabes que casámos?” “Sei sim… Ontem à noite pensavas que ela está cada vez mais bonita… Ficaste surpreendido com esse pensamento, não foi? Há quanto tempo não olhas para ela, apenas olhar, ver os movimentos dela, ouvi-la falar, como gostavas de fazer quando estávamos no liceu. Lembras-te que ela gostava de ler poesia? Que lhe compravas livros que não tinhas coragem de lhe oferecer? E agora? Quando foi a última vez que saíste do teu escritório para lhe comprar um livro? E tu, quando foi a última vez que foste ao teatro, adoravas ir ver os clássicos…? O teu filho vai nascer, ainda te lembras como andar de bicicleta, como jogar à bola, correr pelo jardim quando chove? Lembra-te, se não lhe ensinares tudo isso, com quem vai ele aprender? Terás que o trazer a este jardim, e sentares-te com ele neste banco, e falares-lhe de ti, de quando te sentavas aqui com o teu irmão gémeo, a fazer planos para o futuro. Lembras-te de tudo o que querias ser?”
Alexandre acordou de repente, o sonho perturbou-o. Levantou-se e foi até à garagem, procurou nas caixas que estavam no canto e encontrou… Ainda estavam em bom estado. Dirigiu-se à sala e estava lá Inês a pendurar o quadro. “Quero dar-te o teu presente, o teu presente a sério. Já têm dez anos, mas são teus, comprei-os um a um para ti, mas guardava-os sempre, com medo de te os oferecer, com medo de que o presente fosse pequeno para ti.” Inês leu os títulos um a um, folheou os livros calmamente e sorriu. “Adoro! Adoro-te” “Lês para mim?” “Claro”. Alexandre sentou-se. Olhou para o quadro pendurado na parede, muito bom, realmente. Edmundo Bram… De repente, lembrou-se! Era o nome com que Diogo assinava os seus esboços… Será que Diogo regressou mesmo da Terra do Nunca? Talvez sim, mas hoje era Alexandre que não iria permitir-se crescer. Inês continuava com a sua curvinha no queixo, a sua voz era melodiosa e linda como sempre. E esperava o seu filho. E Alexandre esqueceu-se das pastas que deixou no escritório. Logo à noite iria ver quais as peças de teatro que iriam estrear. E amanhã iria comprar uma bola de futebol.

© Isa Lisboa

Texto publicado originalmente no blog “Instantâneos a preto e branco”