-“Foi-te dada uma parede em branco.” – Começou a Voz, em tom inquietantemente calmo. – “Quando, mais tarde, as tuas mãos tinham força e os teus olhos podiam ver, foram-te dadas tintas e pincéis. No espírito de criança curiosa, foste experimentando as cores uma a uma, entusiasmada com o resultado de algumas, perguntando-te quanto ao contraste entre outras. Não te preocupavas se a parede estava a ficar bela, se estava parecida com as paredes do lado. Era a tua parede. Era a parede em que começavas a ver-te reflectida.”
Estas memórias eram assustadoras e dolorosas, os olhos pareciam querer verter lágrimas, respondendo ao coração que estava apertado com as palavras duras ditas por aquela voz meiga. Eram memórias difusas, que já a tinham assaltado nos momentos de silêncio. Aqueles momentos de que fugia, imersa no ir, no vir, no fazer, no acenar da cabeça enquanto sorria.
Dizia a si própria que eram memórias inventadas, ditas pela sua imaginação.
Como podia ser, como podia aquela parede ter sido branca um dia? E como podia ter recebido tanta cor assim, sem a rejeitar, cuspi-la para fora de si? Como poderia ser possível que tenha sido a sua mão, a sua própria mão a segurar os pincéis que deram tanta cor ao que agora era só cinza, um único tom de cinza?
Não, não podia ser. A Voz enganou-se. Ou estava a tentar enganá-la, a Voz. Porquê não sabia, mas só podia ser isso. Ou talvez ainda estivesse apenas a conhecer a insanidade… Diziam que ela se aproximava inesperadamente, que a confundiríamos facilmente com realidade…
Colocou a almofada por cima da cabeça, não queria ouvir mais nada. “Não, não te quero ouvir!”, gritou mentalmente.
A Voz calou-se, tão repentinamente como havia surgido no ar.
A medo, retirou a almofada da cabeça, confirmou que só silêncio havia sobrado.
Agora tudo lhe parecia ainda mais irreal, insano…
Olhou à volta e confirmou que nada havia e nada se ouvia. Fora tudo fruto da sua imaginação, era a justificação plausível. Era a única.
Dormir. O melhor era dormir.
Aconchegou-se nos lençóis e fechou os olhos. Ao fim de um minuto, o corpo lembrou-a de que estava cansado. O corpo queria dormir, mas a mente não.
Ao fim de algumas horas, finalmente, o corpo ganhou a luta.
Quando acordou, abriu os olhos, olhou para o tecto e a primeira palavra que o despertar lhe sussurrou foi…
Quantos passos precisamos dar para superar a dor? Não tenho um número certo, mágico. Mas sei que é preciso dar um passo de cada vez. E o primeiro, parece-me a mim, é aceitar a dor. Aceitar que está a doer e tudo aquilo que está a fazer doer.
Se ignorares a dor, ignoras tudo o que ela te está a dizer. Ignoras a experiência má e tudo quanto ela te pode ensinar, quanto te pode preparar para o futuro.
O melhor é sempre se não doer. Mas dói sempre, em alguma altura. Somos feitos de carne mole e de nervos sem aço. E é por isso que, nalguma altura, vai acabar por doer. E não é no corpo, é no coração, ou no lugar onde descansam as emoções. Aí é onde dói a sério.
Podes até dizer ao mundo que não dói, que foi só um entalão, coisa pouca,
Mas de ti mesm@ não escondas nada, não te enganes, não finjas que não vês a pele rasgada. Se não, a ferida fica por curar, anda ali naquele impasse, de prestes a infectar, ou, quem sabe, prestes a gangrenar.
Para curares a ferida, tens que olhar para ela e ver exatamente quanto de ti ela dilacerou. Só assim percebes o caminho que tens pela frente.
Depois disso, vêm os próximos passos. Escolhe o teu penso rápido, o desinfectante e o teu cicatrizador. Podes precisar de um analgésico. Mas escolhe-o bem. Doseia-o ainda melhor. Demasiado analgésico mascara a dor.
Escolhe a tua panaceia e aplica-a.
Mas não tenhas pressa. Seja quantos passos precisares dar para superar a tua dor – dá um passo de cada vez. E não saltes nenhum. A seu tempo, deixa de doer, e a ferida cicatriza.
…sorrir e às vezes chorar; é ter glamour e outras vezes até não; sorrir, ser curiosa; criar e ser criativa; lutar e umas vezes ganhar, outras perder; ser traquinas e depois ser séria; ver a vida cheia de cor, exceto quando está a preto e branco; aceitar desafios, mas também parar para descansar.
Criatividade é atirares-te para o abismo sem saberes se as asas vão crescer na descida. É amar tanto a sensação de voar como a possibilidade da queda. É saber que ambas têm a possibilidade de dar à luz algo novo.
Criatividade é ter medo das alturas, mas subir na mesma. Fazer de conta que o chão está perto e usar a sensação de vertigem para criar a sensação de planar.
Criatividade é estar com os pés assentes no chão e imaginar que eles se tornam raízes. E que nos tornamos árvores, e esticamos os braços para o céu.
Criatividade é sonhar a realidade, esquecer que ela existe e ao mesmo tempo reinventá-la.
Criatividade é atrever-se. Nada é mais arriscado do que sair da norma. Mas nada é mais necessário também.
Agitar as águas, para que se formem rios e mares e lagos. Criar novos oceanos, para descobrir novas terras ao cruzá-los.
Criatividade é uma espécie de dor que alivia, um fogo que refresca. Não se compreende, não tem lógica. Muitas vezes feia, tantas vezes bela.
Criatividade é uma assinatura. É deixar a alma sair e imprimir-se no mundo. Deixá-la correr, cantar, dançar, arrancar as roupas e rebolar na terra, como antes de vir ao mundo.
Criatividade é regressar àquele lugar onde tudo é possível.
Naquele dia, ele não sabia que ia ficar mais leve.
Acordou calmamente, como de costume e sacudiu as pequenas gotas de orvalho que caíram por entre as folhas das árvores.
Mas a par das gotinhas, saltou-lhe uma pena. Flutuou por um tempo microscópico e começou a cair em direção ao chão.
Intrigado, deu às asas e desceu atrás dela, até ela aterrar em cima das folhas caídas no chão.
Observou-a atentamente. Era pequena, mas grande ao mesmo tempo. Procurou ao longo do corpo de onde teria saído. Teria um buraco na plumagem? À primeira vista, parecia que não.
Tocou-lhe com o bico e pareceu-lhe macia. As cores pareciam diferentes de quando as limpava. Terminava numa espécie de bico também, provavelmente onde estava antes presa a si.
Enquanto a comtemplava, viu-a levantar-se, puxada por uma brisa mais forte. Movia-se no ar, rodava sobre si mesma, como se fosse agora um corpo próprio.
Ergue-se até perto dela para a observar melhor e a brisa começa a ficar mais forte, puxando-a para mais longe.
Seguiu-a, decidido a não a perder, e continuando a erguer-se. Sentia-se um pouco mais cansado, mas não podia perder a sua pena.
Quando já não conseguia mais, percebeu que tinha voado mais alto que alguma vez se atrevera e o seu pequeno coração apertou-se.
Olhou nervosamente para baixo e teve vontade de descer. Mas tinha ido atrás da sua pena. Olhou à volta e já não a viu em lado nenhum.
Subira demasiado e ainda por cima perdera a sua pena! Mas o que estava ele a pensar? Para que é que se arriscou para tão longe do seu galho? Ainda por cima com menos uma pena!
Olhou à volta à procura de outros pássaros, mas estava sozinho.
Ia começar a descer, mas pelo canto do olho vislumbrou algo fascinante. Olhou à volta e viu. Árvores, árvores e mais árvores. Tantas mais que aquelas que conseguia alcançar do seu galho.
Devia ser disto que ouvia alguns pássaros mais atrevidos a falar.