“São horas de largar a pedra.” – li logo pela manhã.
De imediato me lembrei de um exercício proposto no “Livro do Perdão”, de Desdmond Tutu. Esse exercício propunha-nos que durante um certo período de tempo (talvez um mês, não sei precisar) fechássemos uma pedra na mão e andássemos com ela para todo o lado e fizéssemos o que fizéssemos.
Não levei efectivamente o exercício da teoria à prática, mas imaginei-me a pegar na tal pedra e andar com ela por aí. Para tomar banho, vestir, tomar o pequeno-almoço. Conduzir, apanhar o metro, ligar o computador no trabalho, trabalhar, atender o telefone, voltar para casa, fazer o jantar, continuar a segurar a pedra nas horas de lazer e, finalmente, adormecer com ela.
Não seria mesma nada agradável! E, para além disso, certamente que os nossos movimentos habituais ficariam bastante condicionados; não seriam, certamente, executados com a mesma eficiência, com a mesma rapidez ou com o mesmo prazer. E tudo por causa de uma pequena pedra.
Como talvez já tenham percebido, neste exercício, a pedra representa as nossas mágoas e ressentimentos. Aquelas que carregamos todos os dias connosco, até aonde quer que vamos. E que carregamos no nosso coração. Todos os dias, já sem questionarmos a presença delas ali. Ou o seu efeito.
E tal como a pedra, esses sentimentos pesados condicionam o nosso dia-a-dia, o que fazemos, o que dizemos, como o fazemos e dizemos. Acima de tudo, condicionam a nossa felicidade. E quanto maior a pedra, mais pesada também a nossa vida se torna. Como se, constantemente, empurrássemos um enorme pedregulho encosta acima.
E quanto mais nos agarramos à pedra, maior ela se torna, alimentada pelos nossos próprios pensamentos. E mais íngreme se torna a caminhada.
Não tenho dúvidas sobre os benefícios do exercício do perdão. E também não tenho dúvidas sobre a dificuldade do exercício.
Mesmo quando queremos largar a pedra e sabemos que podemos ser muito mais felizes sem aquele peso; a verdade é que não é fácil deixar ir.
A parte de nós que foi magoada sente-se traída. Sente que, ao perdoar, está a dizer que tudo o que se passou estava bem.
Pois eu digo: não estava bem. Sentiste-te magoada(o) com uma palavra, uma atitude, uma situação? Então olha essa memória de frente e reconhece cada uma das emoções que sentiste. Chama-as pelos nomes, sem brandura, tudo nu e cru. Humilhação, vergonha, diminuição, desilusão. Todos esses e outros palavrões são permitidos. Olha. De frente. Tudo. O que sentiste.
Vou dar-te um aviso justo: este exercício é ainda mais difícil do que o da pedra na mão. Porque vais reviver tudo. E vais reviver com todas as camadas que já puseste em cima para tentares encarar tudo de forma diferente. Tudo o que puseste em cima para tentares esquecer, vai começar a cair. E já não vais mais conseguir disfarçar a mágoa, a raiva. Já não vais conseguir dizer “Não foi nada, já passou!”
Vai ser duro.
E vai ficar mais duro ainda: vais olhar para ti mesma(o) e vais perceber que tu também estavas lá. Vais perguntar-te como pudeste permitir que alguém te tratasse daquela forma. É nessa altura que vais perceber que carregas duas pedras na mão. E que uma delas és tu. Vais perceber que precisas perdoar-te a ti mesma(o).
Essa é a pedra mais difícil de largar.
Talvez nessa altura já terás começado a entender que as atitudes do “outro” tiveram uma causa, que foram o reflexo daquilo que a pessoa sentia em relação a si própria. Mas e então as minhas acções? O que a minha própria atitude diz de mim?
Posso dizer-vos que já fiz este caminho, que ainda o estou a fazer relativamente a algumas situações. E não posso garantir que não tenha que o fazer novamente. Também vos posso dizer – como já disse – que não é fácil. Mas tenho feito este caminho. Como consegui perdoar-me a mim mesma? Repetindo várias vezes a máxima “Apenas podes fazer o melhor que consegues, com aquilo que tens no momento e com aquilo que sabes.”
Se ainda não consegui livrar-me de todos os pesos, é apenas porque ainda estou no processo. Estou a trabalhar. E vou largar a pedra. E vou ficar mais leve.
E tu, que estás a ler, e entendeste cada palavra do que escrevi – tu também vais ficar mais leve.
© Isa Lisboa

Imagem: Autor não identificado