Os ET’s

[Resultante de um desafio de escrita]

 

Cheguei a casa e, assim que abri a porta, vi-o. A vasculhar-me o frigorífico, com uma grande descontração.

Já estava por tudo, fechei a porta, e sentei-me na cadeira a observá-lo. Disse-me algo naquele dialecto ininteligível. Arrisquei um “Olá” e ele pareceu entender.

Tinha o conteúdo do frigorífico espalhado na bancada e fazia calmamente uma sandes.

Que diz estranho este. Passei o dia todo a cruzar-me com homenzinhos e mulherzinhas cinzentas, de estatura curvada e sem expressão no rosto.

Tentei interagir, mas a reacção não foi muito calorosa.

Se era uma invasão extraterrestre, não estavam a ser muito ferozes. Era como se estivessem a incorporar-se lentamente no dia-a-dia, a tentar passar despercebidos.

E agora está um aqui em casa. Isto é tudo muito confuso. Talvez eu esteja a sonhar. Ou a delirar.

Comporta-se como o meu marido, mas não parece ele. Será que os ETzinhos sempre andaram por aí e agora apenas lhes caiu a máscara?

Agora fico assustada com a ideia. Estarei em perigo? Relativizei durante todo o dia, mas agora que penso que posso ter estado todo este tempo a viver com um ET… Isso é assustador!

O que é que isso quer dizer? O que pode implicar?

O possível ET acende a televisão, estão a dar notícias. Nada de anormal a ser anunciado. Não há uma invasão alienígena como notícia de abertura.

Mas o pior é que todas as pessoas na TV se parecem com ele. Com eles. Com os ET’s de hoje.

Começo a sentir-me tonta e vou até ao WC. Lavo a cara com água fria. Pode ser que me ajude a acordar.

Fico com as mãos cobertas de uma substância cinzenta. Fico ainda mais alarmada. Olho ao espelho e vejo a minha cara a derreter. Ou assim parece. É apenas uma espécie de pele cinzenta que se despeja, deixando antever uma cor e textura diferentes. Continuo a passar água até tudo sair.

Demoro algum tempo a digerir o que vejo. Mas de repente, tudo faz sentido.

Não são eles os ET’s.

 

© Isa Lisboa

 

Photo by Mike Chai on Pexels.com

Conto de Pequena Holanda

Imagem: http://www.pixabay.com

Ao ver a palavra “Fim” naquela tela gigante, percebeu que algo de novo começava,
Sempre vivera em Pequena Holanda, rodeada de flores. Começara cedo a profissão da família, cultivando aqueles pedaços de beleza. A maior beleza do mundo, como sempre lhe tinham dito.
E sempre acreditara que o seu pequeno mundo era o mais belo.
Agora, aos 16 anos, descobria que havia mais mundo, para além do campo de orquídeas.
Hoje descobria que, noutros pontos do país, havia uma beleza imensa, maior do que a vista alcança. De um azul mais mágico que a cor de qualquer flor que algum dia tenha visto crescer.
Hoje, Cristiana Pé Curto descobria que queria dar passos de gigante.
Hoje, Cristiana Pé Curto descobria que havia um mundo chamado mar. Um mundo que havia de a levar a outros mundos.
Hoje tornava-se amanhã.

© Isa Lisboa

Este conto surgiu a partir de um desafio de escrita criativa.

Águia

Todos os dias, quando passava naquela rua, o vento levantava-se. Era forte, tão forte, que era preciso um grande esforço para resistir e avançar.

Um dia, num impulso, parou de resistir: sentiu que voava nas asas do vento, o frescor na cara, o ar nos cabelos.

Afinal, sempre fora águia.

© Isa Lisboa

Svetlana Belyaeva

Svetlana Belyaeva

Safira

 

Kawica Singson, Lava and water on camera

Foto: Kawica Singson

Lúcio observa a estranha mulher que, descalça e de calças arregaçadas se aproxima da água. Estava ali parada, apenas parada. Parece enterrar os pés na areia molhada, um de cada vez.

Antes de descer, percorreu o rochedo que ali se ergue, parando de tempos a tempos e também ali permanecendo imóvel por uns tempos. Parecia procurar alguma coisa, mas nada havia ali para achar. À frente, só o mar e, ocasionalmente, um pequeno barco à vela.

Move-se, segue em frente. Acaba por voltar atrás, talvez surpreendida pela onda mais forte que agora veio. Imóvel, continua imóvel, apenas olhando agora para a água, em baixo.

 

Safira olha a água do mar a ir e vir e a forma como os grãos de areia deslizam lentamente ao seu sabor. Nunca antes tinha reparado: parecem grãos de ouro a desfazerem-se e refazerem-se na água.

 

© Isa Lisboa

Publicado originalmente no blog Tubo de Ensaio

Efémera

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Uma efémera nasceu (*). Espreguiçou-se e pôs-se logo a voar. Percorreu todo o céu que tinha ao dispor. Era feliz.

Aproximava-se a 24ª hora, olhou para baixo e observou os humanos: “Tantas vidas têm e andam sempre presos à terra, não voam” – pensou.

Como tinha já poucos minutos, esqueceu os homens e voou o mais alto que pôde. Até que, lentamente, e embalada pela brisa, caiu na terra, que só estava lá para acolher a despedida da efémera que foi feliz.”

© Isa Lisboa

(*) A efémera é o animal com vida mais curta no reino animal, durando, no máximo 24h.

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Publicado originalmente no blog Tubo de Ensaio: 

http://tubodeensaio-laboratorio.blogspot.pt

Orientação

Trazia sempre uma bússola consigo. No entanto, andava sempre perdido.

Um dia encontrou um livro de História. Sobre o tempo dos navegadores. De como encontravam terra usando uma bússola e seguindo as estrelas.

Então decidiu comprar um barco.

A partir daí nunca mais precisou de uma bússola para encontrar o caminho.

© Isa Lisboa

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