Há dias decidi mudar de vaso uma das plantas da minha varanda. Era uma tarefa que tinha vindo a adiar… O vaso estava já meio partido, já há algum tempo que a terra daquela planta não era trocada. Precisava mesmo do transplante. Mas a planta continuava a aparentar estar bem, continuava verde, parecia saudável. Não me parecia urgente.
Mas ao libertá-la finalmente daquele vaso, vi que que a sua base se tinha tornado num vaso de raízes. Pesadas. Apertando-se umas às outras. Pareciam sufocar a própria terra, a tal ponto que parecia não haver espaço para ela. E algumas das raízes estavam secas e sem vida. Puxei-as, e algumas cederam com facilidade. Assim encontrei também espaço para retirar a terra que envolviam.
Neste momento, a planta já está num vaso novo, com terra nova. E, parece-me a mim, mais feliz e mais saudável. Com as raízes que estavam saudáveis. Que parecem estar a fincar-se bem à terra. Pelo sim, pelo não, vou dando uma vista de olhos mais atenta nos próximos tempos.
E, enquanto isso, parti o meu próprio vaso e ando à procura das raízes que já não são minhas e que já não levam a seiva. Depois é só ter força para as arrancar.
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Este texto foi escrito em Maio de 2014 e foi publicado originalmente no meu blog Os dias em que olho o mundo. A planta que na altura transplantei continua, feliz e viçosa, no seu novo vaso.
E eu, ao longo deste tempo encontrei algumas das tais raízes que já não eram minhas. Que já não me alimentavam. Que apenas me estavam a prender a lugares, pessoas, recordações e emoções que já não eram minhas. Algumas não tive dificuldade em cortar. Aceitei rapidamente que um dia tinha precisado delas, mas que já não faziam parte de mim.
Quanto a outras ainda, o processo foi doloroso. Realmente precisei de força para as arrancar. Foi preciso olhar bem para elas, entendê-las bem, perceber porque se tinham ali formado. Libertar-me da culpa de as ter deixado sufocar as outras raízes. Essas, as mais fundas, as que tinham deixado mais marcas, não queriam sair. Resistiram. E eu também resisti. Pode parecer contraditório dizer que tive dificuldade em me libertar de coisas de que já não precisava. Mas digo-vos mais: já não as queria. E ainda assim, não foi de um dia para o outro que as deixei ir.
Nesta jardinagem de mim mesma, entendi que as raízes gastas se estendem a locais que julgamos inacessíveis. E, aí presas, sussurram-nos palavras – umas vezes doces, outras vezes duras – que procuram prender-nos lá com elas. Aprendi que a dor tem medo da solidão. Por isso nos alicia a ficarmos abraçados a ela, a nos deixarmos abraçar por ela. Mas que quando a olhamos nos olhos, sem medo, e entendemos porque ela está ali; é aí que ela perde toda a sua força.
Aprendi que precisamos ver algumas das nossas raízes cortadas, para crescer como realmente somos.
E que, tal como as plantas da minha varanda, precisamos jardinar a nossa alma com frequência. Alimentá-la, deixá-la ver a luz e não deixar que a terra sob os nossos pés não nos deixe abrir os ramos até onde queiramos ir.
© Isa Lisboa

Imagem: Pintrest
No fundo todos nós somos “vasos” com raízes mais ou menos entre-cruzadas e estagnadas nos dias que precederam o nosso presente e que são “alimentadas” pela “terra” dos nosso dias mais felizes ou mais tristes da nossa existência. Na natureza há que saber entender as espécies plantadas para lhes saber mudar o vaso, dando-lhes o espaço para o seu desenvolvimento natural. No ser humano esse espaço é diferente: não tem volumetria-tipo, não tem apertos constantes, a não ser os que são dados pela nossa própria consciência de os ter e pela nossa capacidade em saber aliviar as pressões das mágoas, das dores e falta de amor, concedendo à nossa existência o espaço da oportunidade. Temos um cérebro de uma capacidade incrível para conter os espaços das nossas raízes apodrecidas, vividas e em gestação. Usamos a capacidade ínfima das células com que nascemos e nem imaginamos o quanto era possível fazer estender as raízes das “plantas” que crescem diariamente na nossa relação humana, nas nossas tarefas e experiências, nas novidades que nos abraçam cada minuto. Temos um problema existencial geral que é o espaço do ambiente social em que nos inserimos e que, nalgumas sociedades, deixam crescer as nossas raízes em espaços tão confinados que tornam as pessoas sempre “plantas” tímidas, meio-secas e com rebentos fracos e definhados. Temos, apesar disso, a sorte de ter um panorama humano num mundo em que a maior parte dos “recipientes” culturais nos dão margem para podermos transcender, substituir ou cortar as nossas raízes mais profundas de vida. Podemos quase que começar do zero e “replantar-nos” ao fim de um ciclo de vida vivida de más experiências ou conceitos vãos, se tivermos a coragem de o fazer. Nos últimos anos a sociedade europeia e portuguesa mudaram tanto, por acção do desenvolvimento cultural e informativo, que o que é escandaloso passou a ser o que não é “anormal”. Tratar-mos as nossas “raízes” de forma a extirpar as de passados de martírio ou de sofrimento já não é assim tão difícil, como era à, talvez, 30 ou 40 anos atrás. Quando se fala em Liberdade tem que se assumir a mesma num conceito lato e definitivamente libertador para a mente humana. Ninguém está liberto ou pode ser feliz conservando vivas as “raízes” velhas do seu passado, embora as possa conservar como uma “amostra” arquivada do exemplo de plantios que não quer voltar a experimentar.
Gostei do texto e gostaria que todos pudéssemos tratar as “raízes” que se “enredam” e nos atrapalham o crescimento. Mas não há dois seres humanos iguais ! Há os que tem consciência das “podas” necessárias e, outros, cujas “tesouras” estão enferrujadas pelas lágrimas da sua
própria ignorância de liberdade.
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Das suas palavras, a que me salta mais à atenção é a palavra Liberdade. Sim, somos livres de escolher onde e como as nossas raízes crescem. E quais queremos deixar crescer!
Obrigada, João, por esta sua reflexão sobre o meu pequeno texto!
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