Descobri Vergílio Ferreira na escola, com “Aparição”. No meses seguintes, devorei vários outros títulos deste autor, pedidos emprestados na Biblioteca Municipal. Já na faculdade, comprei alguns títulos, que guardei em conjunto com aquele primeiro livro do autor.
Hoje venho partilhar convosco um pouco do livro “Até ao Fim”, deixando-vos com um excerto que considero que nos leva a várias reflexões, mesmo lido isoladamente.
© Isa Lisboa
“Não me ponhas o pão com água, oh não, Tina. Cresci muito. Durmo já noites de homem. Nem botija no Inverno? Cresci já até aos ombros viris, tenho já a voz grossa, o que digo agora nela tem o peso do mundo, Tina. Estou já cheio de responsabilidades, tu não podes imaginar. Lutas ódios maldições. E os sonhos, que também pesam. E a estafa para atingir o futuro. E os desastres falhanços humilhações. E essa coisa esquisita dos «problemas de consciência». Não me perguntes o que isso seja, que também não sei bem, Tina. E os ideais com que embandeira a loucura. E o quotidiano que é chato por sua intrínseca natureza e que tem também o seu direito. E mesmo o amor, só é bom enquanto não é ou quando já não. como todas as coisas. E esta chatice absurda de só se gostar a valer do que nunca pode existir. E não me ponhas essa cara pasmada de quem viu o demónio em feitio de cabra à meia-noite, porque tudo o que te digo tem uma verdade solar como um dia de canícula. Ah, cresci demais para poderes existir. Em todo o caso não posso ainda existir todo para largar tudo de mão. Uns anos ainda, Tina. Estou bem confuso da vida – enquanto a sonata me envolve ainda de melancolia. Tenho a alma enregelada, se tu fosses ainda a botija. Estou cheio de horrores adultos e seria bom vir ainda de ti a pacificação.”
Vergílio Ferreira, in Até ao Fim